Onda Pina - poema à sexta

Lugares da InfânciaLugares da infância onde 
sem palavras e sem memória 
alguém, talvez eu, brincou 
já lá não estão nem lá estou. 

Onde? Diante 
de que mistério 
em que, como num espelho hesitante, 
o meu rosto, outro rosto, se reflecte? 

Venderam a casa, as flores 
do jardim, se lhes toco, põem-se hirtas 
e geladas, e sob os meus passos 
desfazem-se imateriais as rosas e as recordações. 

O quarto eu não o via 
porque era ele os meus olhos; 
e eu não o sabia 
e essa era a sabedoria. 

Agora sei estas coisas 
de um modo que não me pertence, 
como se as tivesse roubado. 

A casa já não cresce 
à volta da sala, 
puseram a mesa para quatro 
e o coração só para três. 

Falta alguém, não sei quem, 
foi cortar o cabelo e só voltou 
oito dias depois, 
já o jantar tinha arrefecido. 

E fico de novo sozinho, 
na cama vazia, no quarto vazio. 
Lá fora é de noite, ladram os cães; 
e eu cubro a cabeça com os lençóis. 

Manuel Pina, in 'Um Sítio onde Pousar a Cabeça'

Comentários

Mensagens populares deste blogue

Manuel Alegre, Cão como nós

Quero ser outro